O que estamos aprendendo com a crise?
Em meio a uma das piores crises do varejo, ainda há quem sobreviva e encontre solidez para prosperar Teresa Mello Os anos de 2015 e […]
Em meio a uma das piores crises do varejo, ainda há quem sobreviva e encontre solidez para prosperar
Teresa Mello
Os anos de 2015 e 2016 evocam lembranças amargas para o segmento varejista no Brasil. Na pior recessão econômica enfrentada pelo país desde 1931, o setor travou batalhas diárias para a sobrevivência no mercado, lutando contra a alta no desemprego e na inflação, ao mesmo tempo que sofria um recuo nas vendas, devido à queda no poder de compra do consumidor. O resultado impactou em cheio o comércio, que acompanhou, em pânico, as portas sendo fechadas em progressão assustadora. A queda na inflação nos últimos 12 meses trouxe, certamente, um alívio, mas o lojista ainda respira com cautela.
Como varejistas sobreviveram e, ainda, conseguiram prosperar nesse cenário desafiador? Quais foram as lições aprendidas durante o devastador tsunami da crise? Que ferramentas foram adotadas para se ancorar e não fechar portas?
Não existe receita simples para fazer sucesso em meio à crise econômica. A Varejo s.a. trouxe histórias de sucesso, trajetórias de gestão e postura empresarial e espera que sirvam de inspiração e incentivo ao mercado.
Inflação foi a vitrine da crise
O Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) comprovou, mês a mês, o estado de apreensão, dúvidas e desconforto ao longo do biênio.
Janeiro 2015: 7,13%
Junho 2015: 8,89%
Outubro 2015: 9,92%
Dezembro 2015: 10,67%
Janeiro 2016: 10,7%
Março 2017: 4,57%
Fonte: IBGE
Lições aprendidas
Paranaense perseverou e investiu em valores para ver a empresa crescer
A gestão do empresário paranaense Célio Fernandes, de 53 anos, mostra que o sucesso na Biológica Farmácia de Manipulação vem atrelado à adoção de uma série de medidas, entre elas, o associativismo. Vice-presidente da Câmara de Dirigentes Lojistas (CDL) de Cuiabá, ele acredita que compartilhar e trocar experiências com outros varejistas ajuda muito a categoria: “Assim, a gente aprende e evolui”, recomenda. Com três lojas, 62 funcionários e cerca de três mil itens no mix de produtos, lembra que, ao longo dos 29 anos do empreendimento, enfrentou inúmeras crises. “As duas mais marcantes foram a do Plano Collor e esta mais recente, a maior da história”, destaca.
Em 2013, começou a concretizar a expansão. Mesmo em cenário desafiador, no qual sentia “uma percepção da crise”, construiu um edifício-sede da empresa. Não era um prédio comum: uma obra com 700 m2 e R$ 2 milhões de investimento, movida por energia solar. O edifício foi inaugurado em junho de 2015, dotado de itens sustentáveis, como reaproveitamento de água da chuva e eficiência energética. “Temos uma parede verde para reduzir o impacto do calor, adotamos também uma tinta especial para absorção da temperatura e fizemos uma cobertura isotérmica”, explica o empresário.
O resultado da ousadia foi imediato: no mesmo ano, a construção foi premiada pela Associação Brasileira de Eficiência Energética e ganhou visibilidade e a atenção da mídia pelo pioneirismo – o primeiro empreendimento comercial de Mato Grosso movido por energia solar – e o interesse dos meios acadêmicos. Choveram convites para palestras sobre sustentabilidade nos negócios, direcionadas a universitários em cursos de gestão e administração.
O impacto nos negócios foi só um reflexo. “Nós continuamos crescendo dois dígitos”, comemora Fernandes, que apresentou índices de 10% a 14% de crescimento ao ano, a partir de 2015. O maior reconhecimento, portanto, veio do consumidor, que continua a trilhar uma tendência no mundo: prestigiar marcas que apresentam responsabilidade social e ambiental. “A decisão de compra tem base na percepção do cliente sobre a empresa”, alerta. Basta observar como os cidadãos estão cada vez mais atentos a boicotar ou comprar menos produtos de quem pratica ações condenáveis pela sociedade, como trabalho escravo, violência, machismo, homofobia e preconceitos diversos.
Enquanto trabalha na expansão da marca para franquias, o gestor, farmacêutico formado, adota outras medidas inovadoras: em 2016, substituiu alguns medicamentos em drágeas pelo comprimido orodispersível, um tipo de filme que dissolve na boca em segundos e acaba com problemas de deglutição apresentados por idosos, crianças e pós-operados. A necessidade surgiu em casa, ao ver a dificuldade do próprio pai, paciente de Alzheimer e com 90 anos, de tomar a medicação.
Aos varejistas em geral, o vice-presidente da CDL Cuiabá é generoso ao transmitir sugestões para enfrentar e vencer a crise: não ter medo de ousar, de tomar decisões, de correr riscos. “O sucesso empresarial vem atrelado à adoção de medidas, como a necessidade de conhecer a fundo todas as etapas do comércio, pesquisar o negócio, o cliente, saber onde existe uma oportunidade melhor e criar sintonia com toda a equipe, porque essa parceria é fundamental”, receita.
Para ele, a crise econômica provoca um choque, um confronto de atitudes e comportamentos, e a responsabilidade moral começa a se fazer urgente: “É nesse momento que você deve ser ético com seu negócio, seus funcionários, com a sociedade, porque o que vale é a percepção do outro de que você está fazendo a coisa certa”, ensina. “Inovação nos negócios já significou adotar conceitos de responsabilidade social, agora isso está atrelado à sustentabilidade e arrisco dizer que a próxima tendência será tratar de ética e de espiritualidade nas empresas”.
Investimento em tecnologia manteve rede de franquia de roupas em pé
O varejista Sérgio Antunes, de 45 anos, abriu uma loja de vestuário com a irmã em 1996, em Cuiabá. Nascia, assim, a Blue Moon, responsável pela sigla BLM, empresa que hoje soma 36 estabelecimentos – sendo 18 franquias – e 170 funcionários, espalhados por Mato Grosso, Acre, Rondônia e Mato Grosso do Sul. O mix de produtos reúne de cinco a seis mil peças de moda casual básica masculina e feminina em cada unidade vendedora, frequentada por um público das classes C e D.
Treze anos depois, o gráfico de ascensão comercial ainda se mostrava tímido, com um total de seis lojas. A partir daí, houve um boom de crescimento da ordem de 300% até 2014. Depois, a crise chacoalhou, mas não arranhou, os sonhos do administrador, que começou a trabalhar ainda jovem ao lado do pai, representante comercial. “Até 2014, éramos um case de sucesso, vivemos a expectativa da Copa do Mundo e havia mais oportunidade de crédito”, diz. “Em seguida, a crise atingiu em cheio o varejo de vestuário e nós fizemos adaptações, como renegociar aluguel e diminuir o tamanho das lojas. Foram fechadas quatro franquias, mas por decisão do franqueado”.
Soma-se a isso a decisão de ter uma equipe mais enxuta, principalmente na área administrativa. “São apenas sete funcionários no escritório, todo mundo está na loja”, comenta. A empresa foi, ainda, azeitada com a aquisição de um novo software, que favoreceu o controle de gestão e o gerenciamento de estoque e automatizou a distribuição. Se antes havia armazenagem e estocagem de peças na sede, em Cuiabá, com o novo sistema, isso mudou: “Nossos fornecedores de São Paulo e do Paraná agora enviam estoque diretamente para lojas em Porto Velho e Campo Grande, por exemplo”.
“Se você toma decisões e posturas importantes, a crise sempre passa”, pensa Antunes. Entre as atitudes de mudança, ele pontua a necessidade de escutar mais o consumidor, não entrar em desespero e ter sangue frio. “A recessão traz lições, é um aprendizado importante”. Segundo ele, em 2016, a BLM cresceu 3% em relação ao ano anterior. Em 2017, a marca abriu unidade em Barra do Garça (MT) e prepara inauguração de loja também no interior do Mato Grosso, no segundo semestre deste ano.
Reformas e cortes para sobreviver sem dívidas
Quem também adotou alternativas para continuar em operação durante a crise foi a empresa Kazzu Azze, varejista de calçados em Goiânia (GO). Em atividade há 35 anos, a empresa possui 35 unidades comerciais em Goiás, Minas, Tocantins, Maranhão e Mato Grosso. “Chegamos a ter 600 funcionários, mas fizemos alguns ajustes para não enfraquecer no meio do caminho e, hoje, são 450 pessoas”, conta a empresária Conceição Pereira de Santana, 66 anos. Em lojas de cerca de 250 m2, o mix de produtos abarca sapatos para toda a família, incluindo tênis de marca, em segmento voltado para o público das classes B e C.
Apesar de as vendas terem apresentado certa estagnação em 2015 e 2016, isso não foi suficiente para abalar a fortaleza. “Não houve crescimento, mas nós sempre pagamos impostos e nossos fornecedores”, comenta. “Nós não paramos, estamos sempre fazendo uma reforma, adequando o departamento financeiro e esperando o mercado aquecer. Fechei loja em Marabá, no Pará, mas foi por causa da distância”, explica.
Enquanto isso, a atitude é determinada: “O varejista precisa dar continuidade ao negócio, não deve recuar achando que não vai dar conta”. Para ela, a restituição de contas inativas do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) servirá para movimentar o setor ao longo de 2017, ano em que a marca vai inaugurar estabelecimento em shopping de Aparecida de Goiânia (GO).
Entre as medidas estabelecidas para contornar a recessão, estão a renegociação de aluguel, a diminuição de gastos com energia elétrica – por meio de lâmpadas de LED, por exemplo – e a redução de linhas telefônicas.
Inteligência comercial, e-commerce e consultorias especializadas
Um dos associados mais antigos da CDL Goiânia, a Novo Mundo existe há 61 anos na capital, em espiral de sucesso no segmento varejista desde que foi fundada, de maneira bem simples, por Luziano Matias Ribeiro. Hoje, a matriz funciona em sede de 3 mil m2 e existem 135 lojas em nove estados e no Distrito Federal. A rede atingiu Goiás, Minas Gerais, Pará, Maranhão, Roraima, Tocantins, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Bahia. São 3.200 funcionários diretos e cerca de 600 indiretos, entre transportadores e motoristas.
Desde 2004, a companhia, que ostenta 100% de capital nacional, trabalha com e-commerce, no qual oferece 25 mil itens. Nas lojas físicas, o mix engloba cinco mil itens, com destaque para móveis, linha branca e telefonia celular, seguidos da linha de vídeo, portáteis e utilidades domésticas. Segundo o diretor nacional de Operações, José Guimarães, de 43 anos, o público-alvo situa-se nas classes C e D e em parte da B. “Utilizamos inteligência comercial para lidar com regiões bastante distintas. No Pará, a classe C tem o costume de comprar a crédito pelo cartão bandeirado e, no interior de Goiás, a cultura é fazer crediário, utilizando carnê de pagamento”, compara. Dessa forma, a gestão precisa se adaptar ao tíquete médio, à renda per capita, e adotar abordagens diferentes. No crédito, as parcelas estendem-se por até dez vezes e, no carnê, até 15 vezes.
“Sem ter ganhos de produtividade, a empresa não se sustenta”, decreta o diretor, informando que foi necessário modernizar processos e investir em logística, em tecnologia e na capacitação da equipe para não sucumbir à crise. Duas consultorias foram contratadas. “Tivemos de demitir 25% do nosso quadro em 2015/2016, fechar 25 lojas, renegociar aluguéis e suspender planos de consolidar a Novo Mundo em estados do Norte e em parte do Nordeste”, conta ele, acrescentando que falta conquistar Ceará, Piauí, Amapá, Acre e Rondônia.
Realista, o mineiro Guimarães, nascido em Divinópolis, apregoa: “Não adianta prorrogar o sofrimento se você tem que fechar a conta. Para ter resultado, o ajuste deve ser feito na raiz, no detalhe”. Parece que a reestruturação da Novo Mundo vem funcionando muito bem. A meta é saltar das atuais 135 lojas para um total de 300 até 2025.
Palavra de especialista
No último relatório global da Deloitte – empresa de auditoria, consultoria e assessoria financeira presente em 150 países –, apenas uma companhia brasileira figura entre as 250 maiores varejistas do mundo: as Lojas Americanas, na 170ª posição. Em primeiro lugar, está o Walmart; em sétimo, o Carrefour; e, em décimo, a Amazon. “Há menos atrativos para os investidores no Brasil”, resume o economista paulista Reynaldo Saad, sócio-líder para a Indústria de Bens de Consumo e Produtos Industriais da Deloitte Brasil. “A alta carga tributária diminui a rentabilidade, a logística é mais difícil, a infraestrutura também”.
Alta no desemprego, aumento de inflação, queda na renda do consumidor e recuo no poder de compra marcam o panorama sombrio da crise econômica nacional. Aos varejistas, o especialista recomenda investir em tecnologia, em melhoria de processos e controles e na gestão de estoque para obter melhor nível operacional. “É preciso também estabelecer uma proximidade grande com o cliente, estar presente no ponto de venda e fortalecer a identidade da marca”, completa. Outra dica é estar atento a todas as tendências e inovações, além de fazer investimentos corretos.
O perfil do varejista de sucesso é definido como holístico, porque reúne uma composição de fatores. “Ele conhece bastante seu negócio, conhece muita coisa do que acontece com os concorrentes, tem a intenção de crescer solidamente e está aberto para fortalecer a marca e o produto por meio de ferramentas, como a inovação e a tecnologia, aliadas aos controles internos”.
O que é preciso para se manter e vencer
- Inovação.
- (Re)adequação.
- Melhor controle interno.
- Ética, atrelada à responsabilidade social.
- Investimento em tecnologia para acompanhar melhor o negócio e a distribuição de seus produtos e evitar o encalhe.
- Renegociação de dívidas e aluguéis.
- Maior proximidade da equipe e do cliente, em busca da sintonia perfeita.